Todos os dias, milhares de pessoas — especialmente mulheres — desenvolvem uma atividade socialmente fundamental, mas quase invisível aos olhos da sociedade: a tarefa do cuidado. Cuidar dos filhos, familiares, da casa — uma função que consome tempo, energia e atenção, mas que quase nunca resulta em reconhecimento.
Na língua portuguesa, a palavra “cuidar” é sinônima de “tomar conta”, “olhar”, “observar”, “supervisionar”, “dedicar-se”, “interessar-se”.Na prática, cuidar é oferecer tempo, atenção e energia a outro ser humano. Um trabalho contínuo, feito, por vezes, em silêncio e sem descanso. Função, em muitas culturas, atribuída às mulheres.
No dia 23 de dezembro de 2024, o Governo Federal instituiu a Política Nacional de Cuidados, por meio da Lei nº 15.069/2024, e, posteriormente, o Plano Nacional de Cuidados, regulamentado pelo Decreto nº 12.562/2025, com o objetivo de reconhecer e assegurar o direito ao cuidado, fomentando a corresponsabilização social de homens e mulheres. Esse Decreto é um importante marco para a igualdade de gênero no país.
A MULHER E A DUPLA JORNADA DE TRABALHO
Antes de apreciarmos o teor das novas normas, é preciso aprofundar as discussões sobre a dupla jornada de trabalho, o direito ao cuidado e o impacto desses fatores na concretização da igualdade de gênero e no pleno cumprimento do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
O art. 5º, inciso I, da Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, reconhecendo a igualdade entre ambos os sexos. Todavia, na realidade prática, às mulheres é atribuída uma função social extra: o cuidado — o que traz várias implicações, entre elas, a dupla jornada de trabalho.
A dupla jornada de trabalho ocorre quando uma mesma pessoa exerce duas funções ou atividades em seu dia. O termo é bastante associado às mulheres, que, muitas vezes, ao retornarem de seus serviços formais ou informais, precisam cuidar da casa, dos filhos e dos familiares sozinhas. Isso gera um grande impacto negativo na saúde física e emocional, refletindo questões de desigualdade de gênero na sociedade brasileira.
A dupla jornada de trabalho prejudica a disponibilidade de tempo livre da mulher para estudar, se qualificar e se dedicar mais à sua carreira, impactando diretamente em seu crescimento profissional, enquanto o homem, muitas vezes, pode se dedicar exclusivamente ao trabalho, desenvolvendo-se mais.
Até pouco tempo atrás, a legislação não tratava diretamente da temática do cuidado, tampouco da dupla jornada, muito embora algumas normas, ainda que de forma embrionária, já abordassem o tema de forma indireta.
Um exemplo é o instituto da guarda compartilhada, trazido pela Lei nº 13.058/2014, que estabeleceu, em casos de divórcio, a importância do cuidado por parte de ambos os pais com os filhos, rompendo com a compreensão popular de que a criança seria responsabilidade exclusiva da mulher. Trazendo, portanto, a ideia de que ambos os pais devem compartilhar os deveres de cuidado.
A Constituição Federal já tratava, de forma indireta, do direito ao cuidado ao garantir proteção à criança e ao adolescente (art. 227), à pessoa idosa (art. 230), e à pessoa com deficiência (art. 244). No entanto, não havia uma proteção direta ao direito ao cuidado, tampouco ao direito do cuidador.
UM MARCO IMPORTANTE PARA O DIREITO AO CUIDADO:
A Lei nº 15.069/2024 estabeleceu marcos importantes para o Direito ao Cuidado:
- Todas as pessoas têm direito ao cuidado, o que engloba o direito de ser cuidado, de cuidar e ao autocuidado;
- Determina que o cuidado será assegurado de forma gradual e progressiva, por meio de políticas públicas;
- Traz o conceito de corresponsabilidade social pelo cuidado, responsabilizando diversos setores pelo cuidado, como os entes federativos (União, Estados, DF e Municípios), a família, o setor privado e a sociedade civil.
A Lei objetiva:
- Garantir o cuidado com qualidade, tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado;
- Promover a compatibilização entre o trabalho remunerado e as responsabilidades de cuidado, mitigando a dupla jornada de trabalho feminina;
- Promover o trabalho decente para os trabalhadores remunerados do cuidado;
- Reconhecer, reduzir e redistribuir o trabalho não remunerado do cuidado;
- Enfrentar as diversas desigualdades estruturais;
- Mudar a cultura relacionada ao cuidado.
Um dos aspectos mais importantes dessa Lei é reconhecer o trabalho silencioso do cuidado, desempenhado usualmente pelas mulheres, e promover a corresponsabilidade entre homens e mulheres por esse cuidado, com o objetivo de diminuir a dupla jornada de trabalho feminina.
A Lei também determina que o Poder Executivo elaborará o Plano Nacional de Cuidados, o que ocorreu com o advento do Decreto nº 12.562/2025, que regulamentou a criação e integração de serviços de cuidado, a formação e qualificação de cuidadores, a redução da sobrecarga da mulher e a coleta de dados estatísticos para avaliar e valorizar o cuidado.
Dessa forma, conclui-se que a Lei do Cuidado (Lei nº 15.069/2024) e o Decreto nº 12.562/2025 representam um importante passo rumo ao reconhecimento e valorização do cuidado e à promoção da igualdade de gênero.
Dica de Leitura: Proteção Jurídica dos Cuidados, de Flávia Piovesan, Inês Virgínia Soares, Melina Fachin, Vivian Barbour