Por Lisandra Paraguassu
BRASÍLIA (Reuters) – Ambientalistas e defensores dos povos indígenas classificaram nesta quinta-feira o projeto de lei do marco temporal aprovado na véspera pelo Senado como um “cavalo de Troia”, que traz prejuízos muito além da questão da demarcação de terras, e fontes do governo disseram que o texto deve ser integralmente vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O projeto de lei traz mudanças que afetam diretamente a existência das terras indígenas no país e proteção das populações originárias, incluindo a autorização para contato com indígenas isolados e a exploração das terras.
Uma das mudanças aprovadas pelos parlamentares prevê que o governo pode retomar as terras destinadas aos indígenas e dar-lhes outro destino, “caso, em razão da alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado que a área indígena reservada” não é mais essencial para garantir a preservação de sua cultura a subsistência.
Também abre espaço para o governo rever demarcações já feitas ou retirar parte das terras reservadas a uma etnia.
“O texto consolida a tese absurda do marco temporal, mas, no estilo cavalo de Troia, traz consigo a possibilidade de interferência em povos isolados para intermediar atividade estatal de utilidade pública, sem especificar o que diabos é isso”, disse Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, classificando o texto como um “filme de terror”.
“O texto cria obstáculos aos processos de demarcação, viabiliza a implantação de estradas e outros empreendimentos de impacto sem consulta prévia às comunidades indígenas e autoriza a retomada de área indígena reservada… Chega ao requinte da crueldade quando fala genericamente em contato com indígenas isolados ‘para intermediar ação estatal de utilidade pública’, o que pode abranger tudo e mais um pouco”, acrescentou.
A proposta aprovada pelos parlamentares ainda permite “a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico” sem consulta às comunidade, umas das exigências legais hoje.
De acordo com o texto, “o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”, em uma abertura que, na visão de especialistas, pode levar a exploração de minérios e até garimpo dentro das terras indígenas, sob alegação de soberania nacional, mesmo sem autorização das comunidades.
O texto ainda permite atividades econômicas dentro das terras indígenas. Apesar de dizer que é restrita à comunidade, autoriza a “cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”.
Um dos pontos mais graves apontados por ONGs e pelos próprios indígenas é o fato de o texto permitir de alguma forma contatos com índios isolados. Apesar de dizer que deve ser “evitado ao máximo”, e restringir a possibilidade a “agentes estatais” e mediação pela Funai, o texto inclui a permissão de contato em casos de necessidade de auxílio médico e “intermediar ação estatal de utilidade pública”.
Qualquer contato com indígenas isolados pode levar ao extermínio da população, já que eles não têm proteção contra doenças comuns entre não indígenas e mesmo entre outras comunidades. O senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou um destaque para tentar evitar qualquer tipo de contato com indígenas isolados, mas o relator, Marcos Rogério (PL-RO) rejeitou todas as propostas.
VETO
Fontes governistas ouvidas pela Reuters afirmam que o presidente Lula deve vetar integralmente a proposta, não apenas pelo princípio, mas por inconstitucionalidade. Além de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter derrubado a tese do marco temporal, outros pontos também são considerados inconstitucionais.
“Vai se comprar uma briga. Mas com o Supremo do lado”, disse uma fonte.
A oposição, no entanto, já promete derrubar o veto, e possivelmente terá facilidade para conseguir os votos necessários — 257 da Câmara e 41 do Senado — para fazê-lo, em um movimento que deve levar o STF mais uma vez para o centro de uma guerra com o Congresso.