Entrevista: “É preciso depor as lentes racistas do direito brasileiro”, defende Paulo Scott
Em seu novo livro “Direito Constitucional Antirracista”, o jurista critica a suposta neutralidade da interpretação jurídica e propõe uma transformação radical no sistema de justiça para combater desigualdades estruturais
Em um país onde o racismo estrutural ainda permeia as instituições e o sistema de justiça, o jurista Paulo Scott apresenta uma proposta revolucionária para o direito brasileiro. Em seu mais recente lançamento, “Direito Constitucional Antirracista”, Scott desafia a suposta neutralidade da interpretação jurídica e propõe uma transformação radical na forma como compreendemos e aplicamos nossa Constituição.
Nesta entrevista exclusiva, o autor explora como o direito pode ser uma ferramenta efetiva de combate às desigualdades raciais e sociais que ainda marcam profundamente a sociedade brasileira. Confira:
1) Como o senhor define o conceito de ‘direito constitucional antirracista’ e qual a diferença fundamental entre uma abordagem jurídica ‘neutra’ e uma explicitamente antirracista na interpretação constitucional?
O que poderíamos chamar de abordagem neutra, conforme o passar tempo e o amadurecimento dos parâmetros teóricos e culturais da crítica nos revelaram, não consegue sustentar mudanças na realidade porque está cristalizada no compromisso tácito, oculto, pressuposto, de perpetuação das desigualdades socioeconômicas, do panorama em que classe, raça e gênero permanecem submetidos a uma linguagem incapaz de abranger as complexidades e desafios de nossa sociedade marcada por um capitalismo eternamente ligado à colonialidade. Nesse quadro de atraso, a preservação de cidadanias de segunda e terceira categoria é condição de estabilidade, uma perversa estabilidade que adere a uma violência que precisa ser normalizada inclusive dentro do sistema de justiça, que replica o medo. Essa leitura e seus altares precisam ser depostos. Portanto, não me parece absurdo pretender uma exegese que, no centro da linguagem do direito brasileiro, deponha as lentes e dicções racistas que fazem do Brasil país campeão de desigualdade socioeconômica no planeta e esquecem, de propósito, que, por todas as condições materiais que o conformam, este país seria um país destinado a se estabelecer como superpotência no jogo geopolítico. Há um “modo de usar” em nosso direito que contribuí para essa, digamos, ancoragem, para esse afundar, que encontra no léxico racista uma de suas principais ferramentas. Conceitualmente, e buscando não repetir o que está fundamentado no livro, poderíamos dizer que um “direito constitucional antirracista brasileiro” seria uma construção de linguagem capaz de romper com a inércia da tutela dos direitos que, no fundo, não enfrenta e nem superara o sistema civilizatório brasileiro fundado (e sempre renovado) no racismo e no escravismo – isso tudo que normalizamos e, adoecidos sem saber, sonâmbulos, chamamos de estabilidade e até de democracia.
2) Qual foi o momento ou experiência em sua trajetória acadêmica e profissional que o levou a perceber a necessidade urgente de se pensar um direito constitucional antirracista no Brasil?
No mestrado em Direito Público na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em meados da década de 1990, pesquisando e refletindo sobre o que poderíamos chamar de direito constitucional econômico – especificamente no que preceitua o caput do artigo 174 da Constituição, quando situa o Estado brasileiro no papel de agente normativo e regulador da atividade econômica para que atue desempenhando as funções de fiscalização, incentivo e planejamento dessa mesma atividade econômica – comecei a questionar com mais atenção e dedicação a forma e a cultura que configuram nosso modelo econômico de país que foi colônia e comecei a perceber a precariedade da linguagem jurídica que não conseguia conter e operar um léxico suficientemente maduro na exposição de nossas desigualdades sociais estruturais. Havia naquela dogmática uma impermeabilidade quase absoluta em relação às desigualdades amparadas pela disparidade de classe e de raça (e de gênero também). Fui percebendo que a concentração do poder econômico passava por uma permissividade que ganhava reforço e sustentação justamente por poder contar com uma normalidade que ainda estava sistemática e profundamente afetada pela linguagem do racismo e do escravismo. Nossos olhares contaminados não conseguiam perceber a dimensão daquele (desse) quadro perverso – o que, de maneira nenhuma, não passava despercebido aos olhares estrangeiros que aqui chegavam e se surpreendiam com a falácia da tal democracia racial, do tal argumento de que havia uma conciliação sociorracial exitosa, que lhe tinha sido propagandeada.
3) Quais são os principais obstáculos institucionais que impedem a efetivação de um direito constitucional verdadeiramente antirracista no sistema judiciário brasileiro atual?
Há aspectos estruturais que têm peso incontornável. Eu começaria, entretanto, pela inércia e pela incapacidade institucional (que não se confunde com valorosas atuações individuais de alguns de seus órgãos) do Poder Judiciário e do Ministério Público. Há uma espécie de cegueira na atuação dessas duas entidades que precisa ser urgentemente superada. É uma questão de linguagem e de compreensão da renovação ética que a superação da linguagem inoperante e avalizadora do racismo e de sua violência está a nos sinalizar já faz alguns anos. É questão de estudo, de aprofundamento do debate institucional e público e de questionamento da operabilidade do direito, dos valores e princípios alicerçados (e alicerces) na Constituição e na abertura do sistema jurídico que, por seu intermédio, se possibilita. É preciso mais inteligência e mais atenção ao volume de linguagem nova, que está para além da precária linguagem jurídica tradicional, é preciso mais coragem.
4) O senhor acredita que a Constituição de 1988, mesmo com seus avanços, ainda carrega heranças de um constitucionalismo que naturalizou desigualdades raciais? Como superar isso?
A Constituição promulgada sob a promessa de ser popular e democrática é sempre essa multiplicidade de perspectivas. Penso que ampliação de sua vocação agonística (de vozes, quereres, desejos e necessidades apresentados sem silenciamento, sem repressão) na sua condução, na sua concretização, afetaria positivamente na percepção, pelo próprio sistema de justiça, de que a tutela dos direitos não tem sido realizada como poderia e deveria ser. A Constituição é o que de mais concreto se teria, na tradição liberal, de um ideal visível, ela contém ideais, promete ideais. Nessa dinâmica pode falhar, só não pode deixar de ser – sobretudo em seus lugares de linguagem renovadora das desigualdades – marco histórico de onde não se poderá retroceder. Em termos concretos, falo dos direitos sociais, dos direitos trabalhistas, da maneira como o orçamento público é gerido (priorizando o reduzidíssimo clube dos super ricos em descarado detrimento do resto) e também do respeito à liberdade, à vida de pessoas que, pelo racismo e pelo abismo entre classes, têm sido consideradas descartáveis, anuláveis, elimináveis.
5) Que transformações concretas o senhor gostaria de ver implementadas nas faculdades de Direito e na formação de juristas para que uma perspectiva antirracista se torne uma abordagem padrão?
Mais do que meras mudanças curriculares, penso no estabelecimento de um permanente debate em torno da ética escravocrata que afeta a linguagem jurídica fazendo com que ela permaneça insuficiente e inútil no processo de compreensão e superação da perversa desigualdade que determina e marca a realidade brasileira e que, sim, passa pela raça (como dimensão cultural e política de um modo de opressão e afirmação do medo) e igualmente pelo que chamamos de classe e gênero (são dimensões que se entrelaçam). Penso neste livro como um esforço que se soma a um conjunto de esforços que procuram fazer nosso país acordar, sair do passado colonial e se construir como nação justa e soberana por meio de uma linguagem e uma coragem que juntos não havíamos pensado antes.
As reflexões de Paulo Scott em “Direito Constitucional Antirracista” representam mais do que uma análise acadêmica – são um chamado urgente para a transformação do sistema jurídico brasileiro. Ao desvelar como a linguagem jurídica tradicional perpetua desigualdades estruturais, o autor oferece caminhos concretos para que o direito se torne verdadeiramente um instrumento de justiça social.
A obra é leitura essencial para juristas, estudantes de direito, gestores públicos e todos aqueles comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Scott nos convida a abandonar a falsa neutralidade e assumir o compromisso ético de usar o direito como ferramenta de transformação social.
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