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Direito, Consciência Negra e Nova Linguagem

Imagem de uma juíza negra de cabelos grisalhos, vestindo toga preta, sentada em frente a um martelo de juiz, simbolizando justiça e autoridade legal. consciência negra

Por Paulo Scott, autor de Direito constitucional antirracista

                  Certa vez, em visita ao gabinete do juiz Teori Zavascki, que foi meu colega de mestrado na Universidade do Rio Grande do Sul e, alguns anos depois, viria a se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal, perguntei sobre o que ele pensava da distância entre a tutela jurisdicional e a necessidade de construção de uma sociedade que, de fato, prestasse atenção às pessoas excluídas pelo poder, pela força e pela violência do Estado. Ele me respondeu com brevidade; disse, com palavras que eu não saberia reproduzir aqui neste momento, que para aperfeiçoar a prestação jurisdicional era preciso enfrentar diuturnamente uma imensa incompreensão e que, muitas vezes, mais importante do que buscar compreender a realidade, o ser, o trabalho de quem opera o direito deveria, antes, se direcionar à constituição de uma cartografia do que não se compreende. O jurista sabia das precariedades estruturais existentes em nosso sistema de justiça e, avançando com serenidade contra os limites que o seu tempo lhe impunha, buscava enfrentar o que a maioria de seus pares, à época, não compreendia ou não queria compreender. Olhar no espelho do que não sabemos nunca é fácil; e admitir que o volume de nossa linguagem é insuficiente talvez seja ainda mais difícil. Penso que pessoas como o Teori sabem que o direito morre como linguagem da justiça quando deixa de perguntar e, pior, se torna veneno quando resiste em olhar para dentro do espelho das promessas que ele próprio formulou e, nesse processo, se acomoda.

                No universo do não deixar que o direito se torne veneno, o Protocolo para julgamento com perspectiva racial de 2024 do Conselho Nacional de Justiça – que neste mês de setembro completa um ano de vigência – surge no sistema jurídico brasileiro como uma grande revolução. Assumindo status de norma constitucional, cuja observância é obrigatória a todas magistradas e magistrados brasileiros, contém e, de maneira solar, expande uma linguagem nova. É um documento normativo complexo e elegante e, ao mesmo tempo, extremamente acessível, por meio do qual ganham densidade inédita os princípios (podemos chamá-los também de postulados) da liberdade e da igualdade, dimensões sem as quais não conseguimos corporificar o valor-princípio da dignidade da pessoa humana. Sobre esses três parâmetros civilizatórios, o trabalho de outro ex-colega meu de mestrado se tornou referência doutrinária incontornável em nosso país – este ex-colega é o advogado e professor Humberto Ávila, e a obra é Teoria dos princípios. Nessa doutrina, há elementos que tomo como referência para demonstrar, no Direito constitucional antirracista, o quanto, a partir da linguagem do Protocolo para julgamento com perspectiva racial, é possível dar uma densidade à dignidade da pessoa humana que até então permanecia refutada – no plano do direito posto, sem nunca desconsiderar a contratualidade racializadora do direito pressuposto, o Protocolo acolhe uma linguagem que a fortalece na disputa exegética de nosso tempo.

           Não é possível tratar da densificação da dignidade da pessoa humana, hoje, sem a admissão de que sua mais relevante expressão não está no conforto de seu núcleo, mas nas fronteiras que se descobrem muito mais próximas das subjetividades para as quais a dignidade humana (a dita humanidade) é histórica e reiteradamente negada. Fui professor de direito constitucional, de direito financeiro, de direito econômico e de direito tributário; em minha militância docente, passei um bom número de anos operando no campo dessas linguagens. Por conta desse histórico, também por conta dele, entendo que se retirarmos o racismo e a lógica escravista do projeto civilizatório brasileiro, o país inteiro (sobretudo no campo das relações econômicas) desaparece no ar. Mais do que uma moralidade de amplitude contratual social (moralidade criatura da lógica do senhor de engenho), há, nessa tragédia brasileira, uma ética (construtora de forma social escravista, noção articulada genialmente pelo pensador baiano Muniz Sodré) que se impõe como projeto encampado pelo poder, pela força e pela violência estatais, uma ética que raríssimas vezes será questionada pelo Direito de maneira a romper estruturas.

         No país da invenção da escravatura moderna e do orçamento secreto (país em que o orçamento secreto desfila com despudorada naturalidade, como se não houvesse Constituição que o proibisse), as escolhas institucionais voltam-se cada vez mais agressivamente contra a existência de pessoas negras e indígenas; não apenas as atingindo pelo brutal comprometimento de suas autonomias, mas também pelo obliterar do valor intrínseco humano que lhes corresponde, do seu reconhecimento (o igual valor comunitário), do seu mínimo existencial. No delírio suicida de uma parte da sociedade que aplaude uma chacina como a cometida no final do mês de outubro passado no Rio de Janeiro, uma parte tomada pela paixão do racismo e pelo encantamento em relação aos discursos que dizem só haver saída na eliminação dos outros, está uma raiva e um medo que se tornam ódio e caos – ódio e caos que se infiltram no sistema de justiça e o tornam ainda mais serviçal à ética da violência invasora dos que veem este país apenas como um lugar de extração de riqueza, de espoliação, de saque.

         Há uma funcionalidade no ódio, e uma insubstituível utilidade na desordem-ordem do caos – e a perversa elite que, na lógica do tomo posse, logo existo, ambiciona ser dona de todos os corpos e almas sabe disso. Nesse contexto, um documento como o Protocolo para julgamento com perspectiva racial traz ar fresco e liberdade. Sensível à sua presença, tenho dedicado, quase que integralmente, este segundo semestre a diálogos com estudantes, professoras e professores, profissionais da advocacia popular, advocacia previdenciária, trabalhista, civil, criminal, empresarial (sobretudo na parte do compliance), lideranças comunitárias negras, indígenas e brancas, sindicatos, organizações não governamentais, servidoras e servidores públicos, magistraturas, defensorias públicas, promotorias de justiça, policias e parlamentares.

       Sei que o Protocolo para julgamento com perspectiva racial como nova linguagem só ganhará a disputa entre velhas e novas linguagens se for reavivado a cada petição inicial, a cada contestação, a cada audiência, a cada interrogatório, a cada recurso, a cada debate. Nele está o saber de Aparecida Sueli Carneiro, de Maria Aparecida da Silva Bento, de Thula Rafaela de Oliveira Pires, de Muniz Sodré de Araújo Cabral, de Adilson José Moreira e de tantas outras pensadoras e pensadores contemporâneos notáveis que, com a autenticidade de sua consciência negra e constituindo a solidez da consciência negra em nosso país, nos explicam que o racismo não é uma doença que se cura com a aplicação de um simples remédio, mas uma linguagem que fundou e estruturou este território e, atada à colonialidade, continua dominando nossas simbologias e imaginários, fazendo de nosso direito um instrumento da morte, uma linguagem que o Protocolo para julgamento com perspectiva racial ataca de modo exato e corajoso, lembrando-nos (para além do dia 20 de novembro): a hora é agora… não temos mais tempo a perder. 


paulo scottPaulo Scott: Autor dos romances “Habitante irreal” e “Marrom e Amarelo”, atuou como professor de Direito Econômico e Direito Tributário na PUCRS e como advogado de empresas no Rio Grande do Sul. Seus livros estão traduzidos, entre outros, em países como Portugal, Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Polônia, Grécia, Croácia e Estados Unidos. É autor de “Direito Constitucional Econômico” e de “Direito Constitucional Antirracista”.

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