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Taxação sobre grandes fortunas

Taxação sobre grandes fortunas

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Dimas Yamada Scardoelli 

Doutorando em Direito pela Unesp (Franca – SP), professor em cursos de pós-graduação e autor de artigos e livros com as temáticas “tributação” e “agronegócio”. Auditor Fiscal da Receita Estadual – SP. dimasyamada@hotmail.com 

A publicação da Medida Provisória (MP) nº 1.1841 acarretou uma intensa e imediata repercussão nos veículos de imprensa2, uma vez que ela previu a tributação sistemática sobre os rendimentos oriundos de aplicações em grandes e exclusivos (fechados) fundos de investimentos3, com retenções do imposto de renda na fonte em dois momentos a cada ano (final de maio e novembro)4, em patamares de 15% a 22,5%5

Tal tributação, até então, estava prevista somente para o momento do resgate. Essa MP recebeu a alcunha do próprio Governo Federal de “MP dos super-ricos”6 e fez reascender o debate sobre a temática da taxação sobre grandes fortunas no Brasil. 

Uma primeira indagação suscitada pela MP é a seguinte: há sustentação jurídica para exigir com que os super-ricos paguem proporcionalmente mais tributos do que as demais pessoas? A resposta é sim. Dois princípios jurídicos aplicáveis ao Direito Tributário e expressos na Constituição Federal (CF), o da isonomia e o da capacidade contributiva, permitem essa conclusão.

Enquanto o Princípio da Isonomia veda aos entes tributantes que instituam tratamentos fiscais desiguais entre contribuintes que estejam em situações equivalentes (CF, art. 150, II)7, o Princípio da Capacidade Contributiva apregoa que os impostos sejam graduados segundo as capacidades econômicas dos contribuintes (CF, art. 145, §1º)8.

Logo, tais princípios tributários partem do pressuposto de que há diferenças entre as pessoas no tocante a sua respectiva capacidade de contribuir para com os tributos, de forma que a tributação deva ser maior para quem tem mais poder aquisitivo e menor para quem esteja em condições econômicas menos favorecidas.

Mas não é só. A ordem tributária está inserida no contexto constitucional com vistas ao alcance dos objetivos propostos à República Federativa do Brasil, dentre eles, o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a atenuação de desigualdades sociais (CF, art. 3º, I e III)9. Assim, a implantação de uma tributação maior sobre os super-ricos, além da evidenciarem uma justiça sob a ótica fiscal, também exterioriza a solidariedade almejada na Constituição Federal.

Durante o evento em que o presidente assinou a MP, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu as medidas de taxação de fundos e investimentos no exterior. Segundo ele, não há nenhum sentimento de revanche contra os mais ricos, mas uma perspectiva de estabelecer justiça social e um sistema tributário mais equilibrado. […] “Estamos olhando para as boas práticas do mundo inteiro e procurando estabelecer, e nos aproximar, tentativamente, daquilo que faz sentido do ponto de vista da justiça social. Aqui não tem nenhum sentimento que não seja o de justiça social”10.

Em conclusão, exigir o imposto de renda retido na fonte por duas vezes ao ano sobre os rendimentos obtidos por grandes e exclusivos fundos de investimento está condizente com o papel que o sistema tributário nacional deve desempenhar na consecução dos objetivos constitucionais. Essa exigência é tanto uma manifestação de justiça fiscal, como de solidariedade tributária. 

Ainda, a debatida MP também trouxe a lembrança de um imposto que está previsto na Constituição Federal desde a sua promulgação no ano de 1988, porém ainda hoje não instituído, qual seja, o imposto sobre grandes fortunas (IGF), previsto no artigo 153, inciso VII, reservado à lei complementar11

Essa é a segunda indagação: a quantas anda o IGF?

Esse assunto teve um novo impulso com a pandemia de Covid-19 e a consequente busca de alternativas para aumentar a arrecadação brasileira. Diversos projetos de lei estão em andamento com o objetivo de institui-lo12, há uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) em tramitação, de nº 5513, também com esse intuito, as entidades representativas das administrações tributárias brasileiras lhe são favoráveis14, todavia, não se vislumbra, atualmente, qualquer medida mais concreta que faça gerar uma real expectativa15 para a sua efetiva implementação.

Essa nova rodada de reflexões sobre o IGF, com a sistematização das características desses projetos de lei, os prós e contras à sua instituição, dentre outros aspectos, ensejaram a elaboração de artigo de minha autoria, publicado na edição nº 38 da Revista de Direito Tributário Contemporâneo, cuja leitura é ora recomendada em complementação a essa nota técnica.

Por fim, a terceira indagação que vem à tona é a seguinte: além da tributação pelo imposto de renda dos rendimentos dos grandes fundos de investimentos (“MP dos super-ricos”) e da pouco provável instituição do IGF, em termos estruturais (de forma macro), há espaço para alguma outra medida que vise tributar a parcela mais favorecida da população brasileira?

Para responder a essa questão, de início, é preciso ter em mente que a tributação recai sobre os “sinais de riqueza” demonstrados pelos contribuintes, diante da impossibilidade de ser personalíssima. Tais sinais são as “bases de incidência” tributária, cuja classificação adotada pela Receita Federal no cômputo da carga tributária oficial brasileira é a mesma considerada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)16

As “bases de incidência” tributária (“sinais de riqueza” passíveis de tributação) são as seguintes: (i) rendas, lucro e ganho de capital; (ii) folha de salários e previdência; (iii) propriedade; (iv) bens e serviços e; (v) outras menos relevantes17.

No último estudo da Receita Federal (“Carga Tributária no Brasil em 2021”)18 foi realizada a comparação histórica por “base de incidência” (o quadro a seguir foi dele extraído):

Da gama de possibilidades de inferências, uma merece especial destaque. No Brasil, a principal “base de incidência” em termos arrecadatórios é a denominada “bens e serviços” (com 13,5% de um total de 30,9% do PIB, ou seja, parte relevante da arrecadação nacional advém principalmente do ICMS e, também, do IPI, do ISS, do PIS e da COFINS). Essa “base de incidência” contempla a chamada “tributação no consumo”. 

Isso traz como consequência a caracterização da “regressividade” no sistema tributário pátrio. Observe que, na OCDE, as arrecadações tributárias oriundas de três dos cinco grupos de “bases de incidência”, no ano de 2020, estão nos patamares de 10% a 11% do PIB (“renda, lucros e ganhos de capital”; “folha de salários” e; “bens e serviços”), havendo um evidente equilíbrio, diferente do Brasil, em que há uma nítida prevalência da arrecadação fiscal vinda de “bens e serviços”, muito à frente das demais “bases de incidência”.

Conquanto na progressividade, em geral, aumentam-se as alíquotas conforme haja aumentos nas bases de cálculo, de maneira que os economicamente mais privilegiados arquem com a maior carga tributária, com a regressividade o efeito é inverso, pois a tributação tende a ser mais pesada para quem tem menos renda, como é o caso da tributação fulcrada no consumo. 

Um exemplo singelo: a venda de dois pacotes de arroz, para famílias diferentes, uma super-rica e outra com dificuldades financeiras, realizadas pelo mesmo supermercado, tende a gerar ao Estado competente a arrecadação de ICMS correspondente à circulação desses dois pacotes de arroz, sendo que, para a família super-rica, essa compra tem um peso orçamentário ínfimo, ao passo que, para a família menos abastada, a compra desse mesmo produto tem um peso orçamentário relevante.

Portanto, uma eventual baldeação de bases de incidência no Brasil, quiçá insculpida pelas tentativas reformistas do sistema tributário nacional, diminuindo a tributação no consumo (sobre “bens e serviços”), aumentando a tributação sobre outras “bases de incidência” (por exemplo, “propriedade” e “renda”) e mantendo o nível de arrecadação de 30% a 35% do PIB, pode significar a redução da regressividade com aumento da progressividade, cuja efetivação pode levar com que o ônus tributário seja mais suportado por quem, de fato, apresente a maior capacidade contributiva (por exemplo, o maior patrimônio ou a maior renda).

Por fim, é digno de nota que a taxação prevista na “MP dos super-ricos” está inserida na “base de incidência” denominada “rendas, lucros e ganhos de capital”, em que há a maior diferença de arrecadação na comparação do Brasil com a OCDE. Em outras palavras, enquanto a tributação dessa “base de incidência” propicia a arrecadação, no Brasil, de 6,9% do PIB, na OCDE esse patamar está em 11% do PIB.

Entretanto, embora, num primeiro momento, essa sistemática de tributação dos fundos de investimentos trazida pela “MP dos super-ricos” possa parecer uma nova fonte de receita pública, no sentido de propiciar um aumento efetivo da arrecadação nacional total, diante do real espaço para crescimento arrecadatório existente no Brasil nessa “base de incidência” (tal qual o patamar da tributação da renda na OCDE), a verdade é que, no discurso oficial, o Governo Federal argumentou que ela tem o condão apenas de “cobrir a renúncia fiscal com a correção da tabela do imposto de renda, que elevou o piso da contribuição”19.

Portanto, de certa forma, a conclusão governamental é a de que a “MP dos super-ricos” aumentará a arrecadação oriunda da parcela mais rica da população brasileira (com a incidência sobre os rendimentos de fundos exclusivos), visando, primordialmente, compensar a renúncia fiscal decorrente da correção da tabela progressiva do imposto de renda da pessoa física (que atenua a exigência tributária dos menos favorecidos – que recebem as menores rendas).

Com essas considerações e a título de encerramento dessa nota técnica, tem-se que a “MP dos super-ricos” já conseguiu, por enquanto, gerar junto à sociedade brasileira (jornais, universidades, periódicos e portais online) os debates e as reflexões que a temática “taxação sobre grandes fortunas” merece, tão necessários para o desenvolvimento e a evolução da tributação brasileira.

*Texto publicado originalmente no Boletim Revista dos Tribunais Online | vol. 43/2023 | Set / 2023.


¹ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas/1184.htm
² “Entenda a MP que irá taxar fundos de ‘super ricos’ e o PL das offshores” (https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/entenda-os-efeitos-da-mp-que-taxa-fundos-exclusivos-e-o-pl-das-offshores-30082023), “R$ 24 bi em jogo: quem são e quantos super-ricos estão na mira de Lula” (https://economia.uol.com.br/noticias /redacao/2023/08/31/quem-sao-os-super-ricos-que-estao-na-mira-do-lula.htm), “Fundos de super-ricos atraem R$ 13,6 bilhões em meio a debate sobre taxação” (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/fundos-de-super-ricos-atraem-r-136-bilhoes-em-meio-a-debate-sobre-taxacao.shtml), dentre outras tantas recentes notícias.
³“Os fundos exclusivos são aqueles em que há um único cotista. Eles exigem investimento mínimo de R$ 10 milhões, com custo de manutenção de até R$ 150 mil por ano. Segundo estimativas do Governo Federal, há 2,5 mil brasileiros com recursos aplicados nesses fundos, que acumulam R$ 756,8 bilhões e respondem por 12,3% dos fundos no País” (https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/08/presidente-assina-mp-que-tarifa-super-ricos-e-envia-projeto-para-tributar-capital-de-brasileiros-em-paraisos-fiscais)
⁴Essa retenção por duas vezes no ano é conhecida como “come cotas” (https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/08/presidente-assina-mp-que-tarifa-super-ricos-e-envia-projeto-para-tri butar-capital-de-brasileiros-em-paraisos-fiscais).
https://www.infomoney.com.br/onde-investir/fundos-de-super-ricos-que-anteciparem-ir-terao-desconto-mas-quanto-e-como-pagarao-afinal
⁶https://www.migalhas.com.br/quentes/392614/lula-assina-mp-para-taxar-fundos-de-super-ricos
⁷Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
⁸Art. 145. […] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
⁹Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

¹⁰ https://www.migalhas.com.br/quentes/392614/lula-assina-mp-para-taxar-fundos-de-super-ricos
¹¹ Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: […] VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar.
¹² Com destaques para o PLP 202/1989 ( https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?id Proposicao=21594) e para o PLP 277/2008 (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?id Proposicao=388149), que encabeçam uma série de apensos.
¹³ https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5786819
¹⁴ https://www.sindifisconacional.org.br/images/publicacoes/boletins/2020/04-Abril/Bol2601/propostasfisco.pdf
¹⁵ O IGF não foi abordado no Projeto de Reforma Tributária (PEC 45) cujo texto foi aprovado na Câmara e está para apreciação no Senado (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21968 33).
¹⁶ A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é uma organização internacional composta por 38 países da América do Norte e do Sul, da Europa e da Ásia-Pacífico. Inclui muitos dos países mais avançados do mundo, mas também países emergentes como a Colômbia, o México, o Chile e a Turquia. São os seguintes os Estados-Membros da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados Unidos, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Suécia, Suíça e Turquia (https://eurocid.mne.gov.pt/empregos/ocde-composicao#:~:text=%2D%20Alemanha%2C%20Austr%C3%A1lia %2C%20%C3%81ustria%2C,%2C%20Nova%20Zel%C3%A2ndia%2C%20Pa%C3%ADses%20Baixos%2C).
¹⁷ Por exemplo, tributos sobre transações financeiras.
¹⁸https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/carga-tributaria/carga-tributaria-no-brasil-2021/view
¹⁹ https://www.migalhas.com.br/quentes/392614/lula-assina-mp-para-taxar-fundos-de-super-ricos

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