Por Brad Haynes e Jake Spring
MANAUS (Reuters) – A seca recorde na floresta amazônica atingiu Raimundo Leite de Souza em uma manhã de outubro, disse ele, quando acordou e descobriu que o igarapé que corre atrás de sua casa havia baixado cerca de 30 centímetros durante a noite, encalhando seu barco em um lodaçal.
Com o passar das semanas, disse Souza, peixes podres foram parar nas margens do Jaraqui, um afluente do Rio Negro. Roedores se debatiam na lama em busca de água. Carcaças de jacarés e cobras apareceram na floresta.
Souza, dono de uma pousada e líder comunitário em Bela Vista do Jaraqui, disse que então reuniu duas dúzias de vizinhos para perfurar um poço de 60 metros no coração da maior bacia de água doce do mundo.
“Eu tenho 37 anos e nunca tinha visto esse fenômeno acontecer no nosso igarapé”, disse.
Agravada pelas mudanças climáticas, a seca que assola o norte do Brasil, a Guiana, o Suriname, a Guiana Francesa e partes da Venezuela e da Colômbia baixou o Rio Amazonas e quatro dos seus maiores afluentes para os menores níveis em pelo menos meio século.
Matou botos ameaçados de extinção e provocou colapsos mortais nas margens dos rios. Com os rios formando a espinha dorsal do transporte em toda a região amazônica, a seca afetou o acesso a alimentos e medicamentos em dezenas de cidades. E, em um dos maiores produtores de alimentos do mundo, eliminou até 10 milhões de toneladas das previsões iniciais para a colheita de soja do próximo ano.
Constituindo uma ameaça para o clima global, a seca também poderá duplicar a taxa de mortalidade das maiores árvores da floresta tropical, segundo pesquisadores, liberando as enormes quantidades de carbono que elas armazenam coletivamente.
A Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, é considerada pelos pesquisadores como um baluarte contra as mudanças climáticas porque a sua densa vegetação absorve carbono e emite oxigênio.
“Mesmo que não derrubemos mais nenhuma árvore, a Amazônia poderá atingir seu ponto de não retorno”, alertou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na cúpula climática COP28 da ONU, na sexta-feira.
O pior ainda pode estar por vir, uma vez que os especialistas preveem uma seca ainda mais intensa no próximo ano.
A Reuters entrevistou nove pesquisadores que disseram que a seca, que começou em abril, provavelmente enfraquecerá a estação chuvosa, atualmente em curso, e irá durar até a próxima estação chuvosa, no final de 2024.
Cinco desses pesquisadores disseram que é improvável que a Amazônia se recupere totalmente antes do início de 2026, na melhor das hipóteses, porque podem ser necessárias duas estações chuvosas saudáveis para restaurar a umidade normal do solo da floresta.
“Esse é o prelúdio”, disse Michael Coe, diretor do programa de trópicos do Woodwell Climate Research Center, com sede nos Estados Unidos, e um dos especialistas que esperam que os efeitos da seca se prolonguem até 2026. “Onde estamos agora, nós estamos apenas começando.”
Os cinco pesquisadores que preveem uma recuperação em 2026 disseram que os efeitos da seca poderão durar ainda mais se o El Niño se prolongar.
O fenômeno natural afeta o clima global a cada dois a sete anos, aquecendo as águas da costa do Pacífico da América do Sul e atraindo chuvas nessa direção, ao mesmo tempo que reduz a precipitação na Amazônia.
Quatro dos pesquisadores disseram que era difícil prever com precisão quando a floresta tropical se recuperaria desta seca, dada a incerteza em qualquer previsão meteorológica a longo prazo.
“DUPLA PRAGA”
Os cientistas afirmaram que a seca está sendo causada pelo aquecimento no oceano Atlântico Norte e na costa do Pacífico da América do Sul, fenômenos que estão se tornando mais extremos com as mudanças climáticas. Coe chamou isso de “dupla praga”.
As chuvas tendem a seguir as áreas mais quentes do oceano. A água do mar evapora e é transportada para a atmosfera pelas correntes ascendentes de ar.
As temperaturas do Atlântico Norte atingiram máximas históricas em agosto e setembro, com a água da costa da Flórida atingindo temperaturas de banheira de hidromassagem de 38,4 graus Celsius.
Essas águas mais quentes puxaram a faixa de chuvas conhecida como Zona de Convergência Intertropical ainda mais em direção à América do Norte e para longe da Amazônia, tornando o período de maio a outubro –- a estação seca da floresta — ainda mais seca este ano.
Entretanto, as chuvas que normalmente inundariam a Amazônia a partir de novembro estão sendo atenuadas pelos efeitos do El Niño.
“Temos modelos climáticos que mostram que há super El Niños por causa do aquecimento global, que é o que estamos tendo agora”, disse Philip Fearnside, ecologista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
A falta de chuva está drenando o solo profundamente abaixo da floresta amazônica e é improvável que a umidade seja restabelecida até que as fortes chuvas retornem, por volta de novembro do próximo ano, disseram pesquisadores à Reuters.
“Nos últimos 15 anos, esta é provavelmente a quarta ‘seca do século’ na Amazônia”, disse Henrique Barbosa, físico que estuda florestas tropicais na Universidade de Maryland, em Baltimore, nos EUA. “Essa é muito pior do que as que tivemos antes.”
“SOBRECARREGAR A ESTRUTURA”
A seca causou estragos numa vasta região — maior que a Europa Ocidental — que depende dos seus rios para alimentação, transporte e comércio.
O Estado do Amazonas, o mais atingido, declarou emergência pública em setembro e entregou água potável e mais de 1.000 toneladas de arroz, feijão e outros alimentos básicos por meio de aeronaves e barcos menores que podem navegar em águas rasas.
O governo estadual enviou helicópteros para transportar doentes para hospitais e organizou o ensino à distância para cerca de 7.000 alunos que já não conseguem ir à escola.
O governo federal prometeu 628 milhões de reais para ajuda humanitária, incluindo suprimentos médicos, reforços para combater incêndios florestais e dragagem para facilitar o tráfego de barcos, com planos para mais dragagem no próximo ano.
“Agora, a pauta que a gente está trabalhando é de adaptação a essas mudanças climáticas. E o custo disso ainda é inimaginável”, disse o secretário de Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira, em entrevista em Manaus.
Do lado de fora, a fumaça dos incêndios florestais obscurecia o horizonte.
“Um ano tão anormal e talvez dois, três anos seguidos começa a sobrecarregar a estrutura”, disse Taveira.
Os custos econômicos para o Brasil, a 11ª maior economia do mundo, estão aumentando.
Em Itacoatiara, perto do encontro dos rios Amazonas e Madeira, parte de um porto de 66 milhões de reais ruiu em outubro, à medida que o solo seco e solto cedeu, apenas cinco anos após a sua inauguração.
O porto de Manaus registrou o menor nível de água em 121 anos, interrompendo o acesso de navios porta-contêineres por mais de 50 dias.
Linhas de montagem estavam ociosas na Zona Franca de Manaus, onde Honda, LG e outras empresas montam bens de consumo a partir de peças importadas. A fabricante de eletrônicos Positivo Tecnologia reduziu sua previsão de receita para 2023 em 15% a 35%, alertando sobre interrupções nas entregas para a época do Natal.
As barcaças que transportam mais de 40% das exportações de grãos do Brasil para os portos do Norte têm funcionado com metade da capacidade.
A seca ainda forçou muitos produtores a plantar apenas uma cultura este ano em vez de duas, prejudicando em milhões de toneladas as previsões de soja e milho para o próximo ano.
GIGANTES EM RISCO
A própria floresta também está sendo levada ao seu limite, disseram os pesquisadores. As árvores, estressadas pelas condições quentes e secas, estão perdendo mais folhas e deixando mais detritos no solo, o que alimenta os incêndios florestais.
“Essa é a combinação perfeita para um grande churrasco na Amazônia”, disse Paulo Brando, ecologista da Universidade de Yale (EUA).
As secas severas e repetidas afetam os níveis de umidade nas profundezas do solo, onde as árvores maiores mergulham as suas raízes.
A perda destas gigantes pode empurrar a floresta ainda mais rapidamente para um ponto sem retorno, levando à extinção de grandes áreas da floresta, disse ele.
Brando estima que a taxa normal de mortalidade de grandes árvores pode duplicar para 3% ou mais em anos de seca extrema — o que poderá ter enormes impactos nas emissões globais de gases do efeito de estufa.
“As grandes árvores, se começarem a morrer a uma taxa mais elevada, armazenam a maior parte do carbono”, disse Brando.
Se condições semelhantes às da seca se tornarem permanentes com as mudanças climáticas, como sugerem alguns modelos climáticos de longo prazo, o bioma amazônico poderá perder de um sexto a metade da sua área, ou de 1 milhão a 3 milhões de quilômetros quadrados, de acordo com simulações computacionais realizadas por Barbosa.
Isso liberaria enormes quantidades de dióxido de carbono, contribuindo para as mudanças climáticas e destruindo uma riqueza de espécies vegetais e animais encontradas apenas na Amazônia.
“Os efeitos que estamos vendo este ano, se persistirem, seriam trágicos”, disse Barbosa.
(Reportagem de Brad Haynes, em Manaus, e Jake Spring, em São Paulo; Reportagem adicional de Ana Mano e André Romani, em São Paulo)